Emérito da UFMG trata de pandemia e fome
A convite do Núcleo de Comunicação Social, o físico Alaor Chaves, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e colunista do portal do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), analisa o impacto da pandemia da covid-19 no número de mortos por fome no mundo.
Covid-19 – morte pelo vírus e pela fome
A pandemia de covid-19 não poderia ter escolhido pior momento para surgir. A grande crise ambiental, que inclui o aquecimento global; a xenofobia e o crescimento da extrema direita como reações à onda migratória; a concentração de renda; a África excluída da agenda internacional. Os EUA com o pior presidente da sua história – apoiado por fanáticos internos e por presidentes de nações estrangeiras – que agem como seus vassalos.
O novo coronavírus, causador do mal, ainda é muito pouco conhecido; não se sabe ao certo nem mesmo quando e como surgiu. É muito diferente dos coronavírus antes conhecidos e mestre em armar surpresas. Ninguém é capaz de antever a dimensão da pandemia, nem se ela será um problema permanente, como a influenza, só que muito mais grave e letal.
Epidemiologistas de todo o mundo envolveram-se intensamente no enfrentamento da pandemia. Médicos e enfermeiros, que lidam diretamente com os doentes, têm sido infectados em taxas muito acima da população geral.
Seguindo a ciência
O que fazer para minimizar as mortes, o sofrimento e outros problemas causados pela pandemia? Ninguém sabe. Alguns chefes de governo minimizam a dimensão do problema, invariavelmente com resultados muito graves. Outros dizem que ‘seguem a ciência’. Mas o quê, exatamente, significa seguir a ciência?
Cientistas fazem ciência e opinam, como cidadãos, sobre o uso da ciência que fazem e das tecnologias que ela gera. Mas quem decide sobre o emprego de ciência e técnicas é a sociedade como um todo, não os cientistas, por mais qualificados que eles sejam para opinar sobre o assunto.
Nos últimos meses, a presença de médicos e epidemiologistas na mídia (principalmente, na TV) tem sido muito intensa. Ensinam-nos muita coisa sobre o vírus e a covid-19 e, em geral, advertem sobre o quanto ainda se ignora sobre o assunto. Mas, invariavelmente, recomendam o isolamento social – mantidos os serviços essenciais – enquanto se aguarda alguma vacina ou tratamento eficaz. Fiquem em casa, dizem todos eles.
No início da pandemia, quase todos os prefeitos e governadores seguiram a recomendação, com a justificativa aparentemente inquestionável: “Estamos seguindo a ciência.” No outro extremo das ações políticas, vemos governantes poderosos – com destaque para Trump, presidente da mais poderosa nação do planeta – que minimizam a dimensão do problema e ordenam a continuação normal das atividades do país, com a justificativa igualmente inquestionável: “O país não pode parar.” Todos se deram mal. Os primeiros falharam primeiro; os segundos logo os acompanharam no fracasso.
Ouvir a ciência – o que não significa obedecer aos cientistas – já demonstrou, em outras circunstâncias, ser uma posição política geradora de resultados muito positivos. Mas a ciência contém inúmeras especialidades, e numa situação complexa como uma pandemia a opinião de uma enorme variedade de cientistas, engenheiros, economistas e humanistas é importante para orientar as decisões políticas.
Tem havido muito pouca articulação entre esses diferentes profissionais, tanto no âmbito dos países quanto na Organização das Nações Unidas (ONU). Entre as organizações que a ONU contém, temos a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). E, mesmo entre estas, tem havido pouco diálogo.
Enfrentamento em longo prazo
A solução da pandemia por meio do isolamento social requer que cerca de 70% da população permaneçam em casa, o que leva a um nível de paralisação da economia insustentável no médio prazo. Considere-se que esse tipo de lockdown surte efeito rápido e, em coisa de duas semanas, o número de infecções começa a cair. Mas, tão logo a economia é parcialmente reaberta, as infeções voltam prontamente a crescer.
Muito poucos países são ricos o bastante para socorrer de maneira minimamente satisfatória os que perdem suas rendas por prazo maior do que quatro, cinco meses, até porque as receitas do Estado caem drasticamente com a paralisação da economia. E qualquer política de enfrentamento da pandemia tem de contemplar prazo de, pelo menos, mais um ano. O ser humano está sujeito a problemas enormes, e estamos passando por um deles.
Prognósticos alarmantes
A segurança alimentar da humanidade é muito precária. Segundo a FAO, no início deste ano, o estoque total de grãos armazenados correspondia a apenas 32,5% do consumo previsto para 2020. Esse estoque está principalmente nos países grandes produtores de alimentos, cujas políticas de segurança alimentar não preveem catástrofes capazes de paralisar a produção. No caso de alimentos mais perecíveis, não há estoques significativos – come-se o que se colheu bem pouco antes.
O Oxford Committee for Famine Relief (Oxfam) publicou recentemente relatório muito preocupante sobre o que nos aguarda no futuro próximo. Parte dele é reproduzido literalmente:
“O Programa Mundial de Alimentos (PMA) estima que o número de pessoas em situação de crise de fome subirá para 270 milhões antes do fim do ano [2020], o que representa um aumento de 82% em relação ao número registrado em 2019, devido à pandemia. Isso significa que, antes do final do ano, de 6.100 a 12.200 pessoas poderão estar morrendo de fome a cada dia em decorrência dos impactos sociais e econômicos da pandemia, talvez mais do que as que estarão morrendo todos os dias nessa altura devido à doença.”
A pandemia pede políticas muito enérgicas, adotadas em escala global. A fome afetará muito diferenciadamente os países mais pobres, e é responsabilidade moral dos países ricos arcar com quase todo o ônus da solução. A questão não é puramente moral. Fome e outros problemas, na escala em que muito provavelmente irão ocorrer, levarão a convulsões sociais cujas consequências são totalmente imprevisíveis.
Alaor Chaves
Professor emérito
UFMG
Mais informações:
Relatório Oxfam (Brasil):
FAO - alimentos sob a pandemia de covid-19: https://datalab.review.fao.org/
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