Emérito da UFMG discute corporativismo
A convite do Núcleo de Comunicação Social, o físico Alaor Chaves, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e colunista do portal do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), discute, no ensaio a seguir, o corporativismo brasileiro, navegando pelos antecedentes no mundo e enfatizando a exorbitância dessa prática no país.
Corporativismo no Brasil
O corporativismo – já incipiente em Roma e, mais tarde, no século 9, no Império Merovíngio – ganhou força na Idade Média, a partir do século 11. Nessa época, a população europeia começou a aumentar rapidamente, o que levou a um movimento de urbanização.
Cidades começaram a surgir e a crescer. Nos feudos, os utensílios eram produzidos nas vilas de camponeses e artesãos. O ambiente urbano requeria uma economia (e também uma política) mais complexa e com outra lógica. Pessoas praticantes de uma dada atividade começaram a se associar em corporações de ofício, também chamadas guildas. Estas operavam para favorecer seus membros em negociações diversas e dar-lhes proteção contra concorrentes.
As guildas formavam-se de modo espontâneo e, inicialmente, eram autônomas e livres de regulamentações, as quais, quando existentes, eram impostas pelos governos das cidades. Pedreiros, carpinteiros, ferreiros, sapateiros, padeiros, comerciantes etc. formavam suas respectivas guildas. Para exercer um dado ofício em uma cidade, a pessoa tinha de estar filiada à guilda local para aquele ofício. Quem violasse essa regra podia ser expulso da cidade.
Outra grande conquista das guildas foi a reserva do mercado local. Apenas bens produzidos pelas guildas da cidade podiam ser ali vendidos, e os comerciantes desses bens também tinham de ser membros de guildas locais. Não havia risco de os consumidores serem explorados por preços abusivos impostos por esses monopólios.
Na Antiguidade, geralmente os preços do trabalho e dos bens de consumo eram fixados pelo governo. O código de Hamurábi, de 1772 a. C., fixava os preços mais fundamentais. A doutrina cristã, que dominou a Europa Na Idade Média, condenava a usura e o lucro. Juros sobre empréstimos eram condenados. Os bens de consumo tinham seu justo preço, fixado com base nos fatores que determinavam seu custo de produção.
Avanço técnico
Para ganhar prestígio e respeitabilidade, as guildas buscavam melhorar a qualidade de seus produtos. Pela lógica do justo preço, as dimensões e o peso dos utensílios tinham de ser padronizados em categorias de tamanho, e isso tinha de ser feito pelos governos.
As guildas atuavam na definição de procedimentos de fabricação, os quais passaram a ser crescentemente detalhados e fiscalizados por elas mesmas. Isso trouxe avanços na técnica artesanal que resultaram em melhoria dos produtos. Como o avanço técnico quase sempre reduz o custo de fabricação de bens, parece seguro dizer que, uma vez que o preço de venda dos bens era fixo, o avanço técnico trouxe vantagem tanto para os consumidores quanto para as corporações de ofício.
Os trabalhadores se classificavam em uma hierarquia de aprendizes, oficiais e mestres. Estes últimos eram proprietários das unidades de produção, em geral domésticas. Os aprendizes trabalhavam para eles de dois a sete anos em troca de roupa, moradia e comida. Tornavam-se, então, oficiais (ou jornaleiros) que trabalhavam para o antigo mestre, ou algum outro, em troca de salário. Os mais bem sucedidos instalavam suas próprias oficinas de produção e se tornavam mestres.
Diversificação do sistema
Esse sistema de capacitação profissional foi bem sucedido e precedeu o sistema de formação técnica em escolas. O sistema de guildas tornou-se diversificado e inspirou outras iniciativas. A mais antiga universidade europeia, a de Bolonha, foi criada em 1088 por uma guilda de estudantes. As de Oxford (1096) e de Paris (1175), criadas por guildas de mestres.
As guildas, assim como a burguesia, tornaram-se cada vez mais poderosas e começaram a participar dos governos das cidades. O sucesso de ambas foi inicialmente mais notável no norte e centro da Itália, na época dividida em cidades-estados.
As Cruzadas abriram rotas de comércio rentável através do Mediterrâneo que os comerciantes italianos exploraram com sucesso. As cidades do centro e norte da Itália prosperaram vigorosamente, e a taxa de urbanização local alcançou 20% – a mais alta conhecida até então. A tecnologia avançou de forma distinta em toda a região. Muitas guildas uniram-se aos comerciantes em acordos que sustentaram o aumento da exportação de bens e utensílios.
As guildas de maçons (profissionais ligados à alvenaria) tiveram papel central no desenvolvimento da arquitetura gótica – principalmente, no projeto e na construção de catedrais. Poucas cidades tinham condições de construir sua catedral, o que limitava a formação de profissionais dedicados aos ofícios envolvidos.
Esse problema foi resolvido com a criação, pelo papa, dos Maçons Livres, que podiam exercer seu oficio em qualquer local da Europa Ocidental. Houve um boom de construção de catedrais góticas do século 12 ao século 14 – muitas delas estão hoje entre os locais mais visitados por turistas.
Com o desenvolvimento do capitalismo e de preços regulados pelas leis de mercado (oferta e procura), a lógica econômica do sistema de guildas ficou obsoleta. Os trabalhadores passaram a trabalhar para um empregador capitalista em troca de salário, o que gerou acirrada luta de classes entre trabalhador e capitalista.
Nessa luta, o tipo de associação profissional mais importante passou a ser o sindicato. Havia sindicatos de trabalhadores e sindicatos de empregadores.
Controle estatal
Os sindicatos tornaram-se fortes e importantes, e o Estado agiu energicamente para controlá-los. Na Revolução Francesa, em 1791, a lei de Le Chapelier proibiu os sindicatos e as greves, por entender que esse tipo de ação corporativa contrariava os direitos do homem e do cidadão. Em grande parte do século 19, os sindicatos atuaram na França como organizações clandestinas.
Nos regimes ditatoriais do século passado, sindicatos foram perseguidos ou controlados pelo estado. Em 1920, Stálin aboliu o sindicalismo na URSS. A partir de 1922, Mussolini transformou os sindicatos em órgãos do estado e, desse modo, os controlou inteiramente. Em 1933, Hitler criou os sindicatos nazistas. Na China, só há um sindicato legal, subordinado ao Partido Comunista Chinês.
Pela Lei da Sindicalização, criada por Getúlio Vargas, em 1931, os sindicatos de trabalhadores e empresários foram transformados em órgãos de colaboração do estado, sob a supervisão do Ministério do Trabalho.
Pela regra da Unicidade Sindical, o governo só reconhecia um sindicato por categoria funcional em cada região. Trabalhadores e empresários se rebelaram contra o fim do pluralismo, e o governo buscou seu conformismo por meio da oferta de benesses.
Sua vitória sobre os trabalhadores foi total. Seus sindicatos dedicaram-se mais a apoiar as políticas do governo do que a defender os interesses dos trabalhadores. Os líderes sindicais mais submissos ao governo passaram a ser chamados pejorativamente pelegos.
Exorbitância do corporativismo
O corporativismo tem papel importante na dinâmica das sociedades democráticas. Por meio dele, segmentos da sociedade defendem e negociam seus direitos. Entre as organizações corporativas, daremos destaque especial a três: sindicatos, corporações de ofício e grupos organizados de interesses.
Os sindicatos são, por vezes, citados como sucessores das guildas no sistema capitalista. Na verdade, as guildas nunca foram extintas, como veremos mais adiante. O papel dos sindicatos de trabalhadores na conquista de direitos trabalhistas e melhores salários foi enorme. Mas a atuação dos sindicatos, como a de qualquer grupo corporativo, precisa ser disciplinada. E não manipulada por métodos fascistas, como os de Mussolini e Getúlio, mas, sim, pelo caminho de leis consistentes com a democracia.
No Brasil, há um liberalismo excessivo referente aos sindicatos de funcionários públicos, que têm tido efeitos bem negativos. Esses sindicatos ganharam poderes que os tornam praticamente impermeáveis à ação pública – e até mesmo à opinião do resto da sociedade.
Para melhorar o serviço público e torná-lo condizente com seu custo, o Brasil carece de uma reforma administrativa, que atualmente está em pauta. Mas grandes avanços são pouco prováveis, pois o sistema é um vespeiro em que atuam sindicatos e corporações de ofícios.
Com a Constituição de 1988, buscou-se a profissionalização da carreira de servidor público, mas o sistema fracassou. Em um país onde essa profissionalização funciona efetivamente, serviços do Estado alteram pouco em mudanças de governo. Mas, no Brasil, há exagero no número de cargos comissionados, cujos ocupantes o presidente da República, os governadores e os prefeitos podem escolher livremente.
O presidente da República dispõe de mais de 20 mil cargos comissionados e é difícil conhecer os números de cargos à disposição de governadores e de prefeitos. Por um lado, isso dificulta a continuidade de programas públicos. Por outro – o que é mais grave –, esses cargos são loteados entre membros do poder legislativo em troca de apoio político.
Ministérios e diretorias de empresas estatais são entregues a pessoas tecnicamente – e, muitas vezes, também moralmente – desqualificadas. Isso resulta em má administração e aumento da corrupção.
A estabilidade de servidores públicos em várias carreiras é importante para que eles trabalhem livres de pressões políticas. Entretanto, no Brasil, ela é dada para todos os concursados – e muito precocemente. Após três anos de estágio probatório, o servidor público ganha estabilidade sem que seu desempenho seja avaliado, e passa a ser promovido por tempo de serviço, sem avaliação de mérito.
A ascensão é rápida, e, em pouco tempo, o funcionário atinge o topo da carreira para a qual fez concurso. Não há qualquer incentivo para bom desempenho.
Meritocracia é palavrão para os sindicatos de servidores públicos. A estabilidade do servidor público, garantida pela Constituição, acabou sendo estendida na prática para os funcionários concursados das empresas estatais.
As greves de servidores públicos no Brasil são singularmente frequentes e duradouras. Com boa frequência, envolvem serviços essenciais para os quais a constituição proíbe greve, como segurança pública e saúde.
Não raro, greves de policiais, proibidas pela Constituição, adquirem caráter de motim, como aconteceu recentemente no Ceará. Não espanta que nossa polícia – que cedo se engaja em uma política de obter ganhos diversos por meio de ações ilegais – tão frequentemente se envolva na criminalidade. Há outras razões para essa criminalidade – muitas delas, de caráter corporativo.
Em 1937, Getúlio impôs nova Constituição ao seu gosto e virou ditador até 1945. Nessa Constituição, foi criado o imposto sindical, contribuição obrigatória a filiados e não filiados a algum sindicato. Esse imposto só foi abolido em 2017.
Em seu tempo de validade, os sindicatos se multiplicaram. Criação de sindicatos tornou-se empreendimento lucrativo. Temos, hoje, cerca de 16.900 sindicatos, mais de 90% dos sindicatos do mundo. Mais ainda, espanta o fato de 31% deles serem sindicatos de empregadores.
Corporações de ofício
As corporações de ofício da Idade Média permanecem ativas. O monopólio do direito do exercício de dada profissão foi institucionalizado por meio das profissões regulamentadas. Na maioria dos casos, o exercício de uma profissão regulamentada requer a posse de diploma escolar específico.
No Brasil, garimpeiro e repentista são profissões regulamentadas. Temos claro excesso de profissões regulamentadas e também valorização artificial de diplomas de curso superior – quem tem esse tipo de diploma é privilegiado até mesmo ao ir para a cadeia. Criou-se, assim, mercado de diplomas em vez de mercado de competência.
Menos de um mês após tomar o poder, em 1930, o advogado Getúlio criou, por decreto, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Esse foi um grande marco do corporativismo brasileiro. Por 90 anos, a OAB tem defendido os interesses dos advogados com empenho e eficácia sem par. Os advogados sempre foram também a classe profissional dominante no Congresso, e nossa legislação mostra traços evidentes dessa influência.
A Constituição (constantemente atualizada por emendas) cita a Ordem dos Advogados do Brasil oito vezes. Não há qualquer outra corporação de ofício citada na constituição.
Nossos códigos de processos dão margem a infindáveis recursos, e, abaixo do Supremo Tribunal Federal, há duas instâncias de recursos – em outros países democráticos, apenas uma. Os órgãos estrangeiros equivalentes ao nosso STF só julgam questões de constitucionalidade ou questões gerais de grande importância não reguladas por lei federal.
No Brasil, o STF é uma terceira instância de recursos acessível a quem tenha muito dinheiro. Essas extravagâncias criam um mercado de trabalho extraordinário para os advogados, além de protelar indefinidamente o julgamento irrecorrível dos muito ricos.
Nossos magistrados situam-se praticamente acima da lei. Quase todos os inquéritos referentes a ilícitos cometidos por magistrados acabam sendo arquivados. Se levados adiante, a punição mais provável para o magistrado é aposentadoria precoce com vencimentos integrais.
Nosso sistema jurisdicional paga a seus servidores salários altos, mesmo em comparação com os equivalentes nos países desenvolvidos. Um juiz da corte suprema da Suécia ganha salário de pouco mais de R$ 20 mil, sem adicionais de qualquer espécie. Com penduricalhos diversos, nossos magistrados e procuradores do Ministério Público comumente atingem supersalários inexistentes no serviço público de qualquer outro país.
Após a Constituição de 1988, profissões bem renumeradas passaram a ser exclusivas de portadores do título de bacharel em direito. Uma delas é a de delegado. Outra ‘jabuticaba’ que merece ser destacada são nossos cartórios. Somos um país notoriamente cartorial. Quase tudo no Brasil passa por um cartório, e cópias de documentos de cartórios têm de ser autenticadas em cartório.
Antes de 1988, os cartórios eram benesses concedidas por políticos, e sua propriedade era hereditária. A Constituição tomou a boa iniciativa de tornar a função de tabelião só acessível por concurso público. Mas não tardou para que a inscrição em tais concursos requeresse um diploma em direito.
Cartórios são extraordinariamente lucrativos. Há, no Brasil, quase 14 mil cartórios, que, em 2019, declararam arrecadação de R$15,9 bilhões – e a sonegação no setor é alta.
Não espanta que o Brasil tenha 180 advogados registrados na OAB por habitante, o maior índice do mundo. Em 2019, havia, no Brasil, 1.670 faculdades de direito, que oferecem 313 mil vagas.
Grupos de interesse
Alguns dos grupos organizados de interesse aqui descritos poderiam ser enquadrados na categoria de sindicatos. Mas sua influência sobre o Estado e a sociedade é tamanha que os tratamos separadamente.
Falamos das federações e confederações de empresários. Quatro delas merecem ser citadas explicitamente: federações estaduais de indústrias; Confederação Nacional da Indústria (CNI); Federação Brasileira de Bancos (Febraban); Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a CNI têm enorme trânsito nos governos e nos palácios, e influenciam de modo singular não só nossa política industrial, mas também nossas políticas tarifárias e de comércio exterior. Conseguem isenções tributárias sem oferta de qualquer contrapartida e são, talvez, os principais responsáveis pelas altas tarifas alfandegárias que as protegem de concorrência internacional.
Quase todos os associados da Anfavea são grandes empresas multinacionais do setor automotivo. Aqui, obtêm, quase invariavelmente, lucros maiores do que nos outros países onde atuam. Mesmo assim, conseguem benesses injustificáveis, sem oferecer contrapartida nem aumento significativo de produtividade.
O setor bancário é o mais lucrativo do Brasil. Nossos spreads bancários são estratosféricos. A Febraban atua junto ao governo com eficácia para impedir a entrada de bancos e instituições financeiras estrangeiras no país. Temos, assim, monopólio que atua como cartel e perpetua o valor absurdo dos juros bancários no Brasil.
O Brasil precisa de profunda reforma tributária. O tema está em discussão, mas não avança. Os impostos precisam ser mais progressivos. O imposto de renda sobre empresas precisa ser reduzido, e os dividendos dos proprietários precisam ser taxados com alíquota justa. Mas isso retira privilégios fiscais dos mais ricos, que agem como grupo organizado em defesa de seus interesses.
Finalmente, temos as cada vez mais influentes bancadas no Congresso Nacional. Bancada Evangélica, Bancada Ruralista e uma bancada que oferece apoio ao governo em troca de cargos. Falamos do Centrão, formado por parlamentares que não têm ideologia nem qualquer programa, além do fato de serem sempre governistas bem recompensados.
Há, no Brasil, um setor agropecuário altamente tecnológico e ciente das vantagens econômicas de se preservar o meio ambiente. Entretanto, a bancada ruralista no Congresso é formada por ruralistas (predominantemente, pecuaristas) extremamente retrógados e contrários ao controle ambiental, à preservação das florestas e dos cursos d’água.
Alaor Chaves
Professor emérito
UFMG
Redes Sociais