Carson é a terceira cientista biografada
O Núcleo de Comunicação Social publica o terceiro de quatro ensaios do físico Alaor Chaves – professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e colunista do portal do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ) – sobre pesquisadoras da área de ciência agrícola e ecologia cujos trabalhos foram importantes para a prática sustentável da agricultura. Nesta edição, a norte-americana Raquel Carson.
Rachel Carson (1907-1964)
Rachel Carson foi uma bióloga marinha, ecologista e escritora norte-americana. Sua obra – na qual se destaca o livro Silent spring (Primavera silenciosa), de 1962 – é apontada como a deflagradora do movimento ambientalista moderno.
Nasceu em 1907 numa propriedade rural de 26 hectares, no interior do estado da Pensilvânia, que ela gostava de explorar quando menina. Seu pai era vendedor de seguros; sua mãe, dona de casa. Era leitora ávida e, aos oito anos, começou a escrever histórias – em geral, incluindo animais. Aos dez, publicou sua primeira história numa revista local e, a seguir, várias outras. O editor da revista lhe enviou um cheque de dez dólares - na época, bom dinheiro!
Em 1925, terminou o ensino médio como primeira da classe e ingressou no College da Pensilvânia para Mulheres (hoje, Universidade Chatham). Optou por língua inglesa, mas, em 1928, mudou para biologia e graduou-se, em 1929, magna cum laude.
Com a recessão da economia, teve de trabalhar em meio expediente para ajudar a família, mas obteve mestrado em zoologia na Universidade Johns Hopkins, em 1932.
Em 1935, perdeu o pai e, em 1937, sua irmã, tendo de assumir o sustento da mãe e de dois sobrinhos.
Trabalhou desde 1935 no United States Bureau of Fisheries (Departamento de Pesca dos EUA) como bióloga aquática. Escreveu a série Romance under the waters (Romance sob as águas) para rádio – destinada à educação do grande público sobre a vida aquática – e artigos para revistas e jornais.
Em 1941, publicou seu primeiro livro, Under the sea-wind (Sob o mar-vento), um tanto ignorado no início, mas, mais tarde, um best-seller. Em 1948, estava decidida a tornar-se escritora em tempo integral. Seu segundo livro, The sea around us (O mar em torno de nós), de 1951, permaneceu na lista dos best-sellers do New York Times por 86 semanas e lhe rendeu o National Book Award for Non-Fiction em 1952. Publicou um terceiro livro, The edge of the sea (A borda do mar), em 1955.
Investigação de pesticidas
Nesse tempo, Carson já estava atenta a problemas ambientais decorrentes do uso de pesticidas sintéticos (especialmente, o DDT). A capacidade inseticida desse produto, sintetizado em 1874, foi descoberta em 1939 pelo químico suíço Paul Hermann Muller (1899-1965), que, por isso, ganhou o Nobel de Medicina e Fisiologia em 1948. Foi intensamente usado pelas tropas aliadas na Primeira Grande Guerra, para combater o tifo e a malária. Em 1945, estava disponível para a venda nos EUA.
Por ser barato e eficiente, em poucos anos, o DDT passou a ser usado em grande quantidade (e de forma descontrolada) nas lavouras, hortas e jardins, em todo o país. Já em 1947, os riscos desse uso indiscriminado foram apontados pelo médico Bradbury Robinson (1884-1949). A substância é persistente e se acumula no corpo de pássaros e peixes que comem os insetos, e também no corpo dos humanos que comem peixe contaminado. Em resumo, é um produto que entra na cadeia alimentar de maneira hierárquica. Quase dizimou aves de rapina nos EUA. Em altas doses, é cancerígeno em ratos de laboratório. Na década de 1950, houve indícios – pouco conclusivos – de câncer no fígado em humanos decorrente de DDT.
Em 1957, Carson já estava envolvida na investigação dos efeitos do DDT e outros pesticidas sintéticos sobre a natureza, os animais e humanos. Uma de suas sobrinhas morreu precocemente, deixando órfão um menino que Carson não hesitou em adotar. Sua situação financeira já era bem confortável, cuidar do sobrinho-neto só exigia os cuidados usuais de mãe.
Buscava superar suas limitações técnicas em efeitos de pesticidas, apelando para pesquisadores mais qualificados – e ela conhecia muitos. Alguns endossaram suas suspeitas, parte deles lhe indicou publicações científicas sobre o assunto. Conhecidos seus no governo lhe passaram informações confidenciais.
No governo, as opiniões costumavam ter viés favorável ao uso intenso dos pesticidas, os quais, sem dúvida, aumentavam a produtividade agrícola.
O Departamento de Agricultura chegou a aventar o extermínio em território norte-americano das formigas de fogo (fire ants) – mais conhecidas no Brasil como formigas lava-pés – por meio de emprego em larga escala de DDT. Esse gênero de formigas é um dos principais insetos invasores em várias regiões do mundo.
Com o uso do DDT, a malária fora eliminada dos EUA, da Europa e Rússia e altamente reduzida no sul da Ásia e na África subsaariana.
A maioria da população norte-americana encarava os pesticidas como parte da ampla revolução técnica que sucedeu à Segunda Grande Guerra e não estava consciente de que seu uso precisava ser reduzido e controlado pelo governo.
Cautela no uso
Carson iniciou, em 1959, a escrita de seu clássico Silent spring (Primavera silenciosa). Em 1960, descobriu ter câncer de mama e, pouco depois, que havia metástase. Fez mastectomia e radioterapia e continuou seu trabalho. O livro foi publicado em setembro de 1962.
Carson e a editora Houghton Mifflin tinham antevisto agressiva reação dos produtores de pesticidas, à qual tentaram se antecipar criando, no grande público, posição simpática ao livro. Enviaram cópias da pré-publicação a órgãos da imprensa e a outros formadores de opinião. Em junho daquele ano, a revista New Yorker publicou, em três edições, fragmentos do livro. Em julho, a Audubon Magazine fez algo similar, e o New York Times publicou editorial positivo sobre o livro. Isso promoveu as vendas iniciais da publicação.
O livro alerta sobre as consequências já comprovadas (e outras prováveis) do uso absurdamente liberal dos pesticidas sintéticos.
Além do estilo poético que a autora desenvolvera nos escritos populares anteriores, o livro tem tom caloroso – às vezes, comovido. Ela quer – e consegue – sensibilizar o grande público sobre a gravidade do problema.
Inicia com um capítulo curto, uma fábula sobre uma cidade, “no coração da América”, onde a vida corria em harmonia com o ambiente. Mas tudo muda após um pó branco cobrir sua área. Doenças estranhas atacam plantas, animais e pessoas. Não há mais canto de pássaros, as macieiras floreiam e nenhuma abelha vem zumbir entre os seus ramos. Os homens não mais frequentam os rios, pois neles não há peixes para pescar. Quem lê fábula lê o livro.
Em 1965 ou 1966, li o grande livro com apreensão – eu usara o formidável DDT com entusiasmo e nenhuma cautela, e a elevada conta não tardaria a chegar.
A recepção do livro foi combinação ruidosa de louvores e ataques. Em uma das muitas resenhas do livro, lemos:
“Silent Spring is a devastating attack on human carelessness, greed and irresponsibility. It should be read by every American who does not want it to be the epitaph of a world not very far beyond us in time.” [Silent Spring é um ataque devastador ao descuido, ganância e irresponsabilidade humanos. Deve ser lido por todo norte-americano que não quer que ele seja o epitáfio do mundo não muito além do nosso tempo] - Saturday Review.
A indústria química produtora de pesticidas desqualificava a autora e negava as alegações do livro. Carson e a editora eram ameaçadas de ações judiciais.
Fragilizada pelo avanço do câncer, Carson tinha pouca energia para reagir – até mesmo para comparecer a cerimônias em sua homenagem.
Ezra Taft Benson (1899-1994), ex-secretário da Agricultura no governo de Dwight Eisenhower (1890-1969), envia a este carta um tanto patética. Aponta que Carson não se casara, embora fosse fisicamente atraente. O fato sugeria que ela fosse comunista.
Em 1962, o presidente John Kennedy (1917-1963) pediu a seu Comitê Consultivo de Ciências estudo da controvérsia. Recebeu, em abril de 1963, parecer que, em geral, endossa as alegações de Carson, que morreu um ano depois, quando a pressão da indústria química já estava se abrandando.
A bióloga e escritora Rachel Carson
(Crédito: Wikipedia Commons)
Reconhecimento póstumo
O movimento ambientalista cresceu continuamente nos 15 anos que se sucederam à morte de Carson.
Em 1970, o presidente Richard Nixon (1913-1994) criou a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, e, em 1972, ela baniu o DDT no país. Na década de 1970, agências de proteção ambiental análogas foram criadas em vários países, e o primeiro alvo costumava ser o DDT, banido na maioria dos países europeus e em outros – no Brasil, a proibição de seu uso só ocorreu em 2009.
O DDT e os pesticidas organoclorados análogos foram substituídos pelos organofosforados, bem menos persistentes no ambiente.
Rachel Carson virou celebridade mundial. Recebeu grande quantidade de prêmios e homenagens póstumas. Em 1973, foi incluída no National Women's Hall of Fame. Em 1980, o presidente Jimmy Carter (1924-1997) lhe concedeu a Medalha Presidencial da Liberdade. Virou nome de escolas de ensino primário nos EUA e de uma de ensino médio no Brooklyn, na cidade de Nova York. A Universidade da Califórnia em Santa Cruz deu a um dos seus colleges o nome Rachel Carson College.
Seu legado, na área ambiental, é incomparável.
Legado ambiental
Ao contrário do que muitos pensam, Carson nunca propôs o banimento do DDT. Em Primavera silenciosa, recomenda que seu uso seja controlado, e as aplicações usem as doses mínimas de efeito eficaz, para poupar o ambiente e evitar o surgimento de insetos resistentes. Os insetos são vetores de doenças que geram fatalidades, e Carson sabia que o mundo ainda não tinha alternativa para o DDT. A principal dessas doenças é a malária.
As infecções podem ser reduzidas enormemente pela aplicação de DDT dissolvido em óleo às paredes das casas, que só precisam ser desocupadas no dia da aplicação.
Doses pequenas são eficazes por um ano. Por força de políticas locais e recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), a prática dessa chamada ‘dedetização’ foi quase inteiramente abandonada. Mas a incidência de malária tornou-se alarmante.
Segundo a OMS, em 2015, houve, no mundo, 212 milhões de infecções de malária, que geraram 429 mil mortes – 90% destas na África subsaariana. O uso de inseticidas alternativos, tentado na África do Sul, gerou mosquitos resistentes.
Em 2006, a OMS recomendou a dedetização de casas no combate à malária, revendo diretriz de 30 anos. Obviamente, é necessário que a posse e o direito de aplicação de DDT sejam restritos aos governos, para evitar excessos e o uso desse inseticida barato e poderoso em lavouras.
Discrição, não hipocrisia
A premiada historiadora da ciência e biógrafa Linda Jane Lear publicou em 1997 a biografia Rachel Carson: witness for nature (Testemunha da natureza). Também coletou e editou escritos inéditos da autora, como os livros Lost woods (Matas perdidas) e Sense of wonder (Sentido de encantamento).
Na referida biografia, Lear trata o relacionamento que Carson teve com Dorothy Freeman, dona de casa com filhos, nos últimos 12 anos de sua vida. As duas se encontravam frequentemente e trocaram pelo menos 900 cartas de tom muito afetivo.
Era comum que colocassem duas cartas no mesmo envelope, uma delas para ser lida e protegida, a outra para justificar o envelope. Foram cautelosas nesse relacionamento e, antes da morte de Carson, destruíram grande parte das cartas. Mas muitas sobreviveram e foram publicadas por uma neta de Freeman no livro Always Rachel: the letters of Rachel Carson and Dorothy Freeman (Beacon Press 1997). Essas cartas revelam que o relacionamento entre as duas tinha fundo romântico.
Mas, segundo Lear, o que unia as duas amigas era um conjunto de afinidades e interesses comuns, e, desde então, o assunto é tratado por quase todos os comentaristas com cautela que beira a hipocrisia.
O preconceito humano leva a essas mistificações sem sentido. A grande humanista Rachel Carson – que tanto se sacrificou pela mãe e parentes, que amava os animais, as plantas e a humanidade – nunca manifestou interesse romântico pelo sexo oposto. Não era comunista; era apenas diferente e não se enquadrava no script que a cultura dominante atribuía a uma mulher.
Na maturidade, encontra Dorothy Freeman, seu complemento sentimental, e as duas se deixam levar pelo sentimento que as unia. O episódio pede respeito e discrição, não hipocrisia.
Alaor Chaves
Professor emérito
UFMG
Mais informações:
Raquel Carson: https://www.rachelcarson.org/
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